No idioma chinês o ideograma da palavra crise tem duplo significado: perigo e oportunidade. Apesar de os Estados Unidos terem tido superávit no comércio com o Brasil nos últimos 15 anos, a carne que exportamos para lá, assim como outros produtos exportados, foi taxada em 50%. Isto de imediato é um duro golpe. E injusto. Porém, se passarmos a transformar uma parte dos nossos pastos, atualmente voltados à exportação de carne ao mercado americano, em SAFs (sistemas agroflorestais), muitos serão os benefícios.
Quem exporta carne bovina indiretamente exporta água de graça. É estimado que para cada quilo de carne produzido se gaste 7.000 litros de água. No caso da produção de um quilo de milho, por exemplo, o consumo de água é reduzido para mil litros. Além do alto consumo de água nos pastos e nas monoculturas de soja para alimentar o gado, as chuvas escorrem em vez de infiltrarem no solo. Isso provoca enchentes catastróficas, que poderiam ser evitadas, e leva embora nutrientes da camada superficial dos solos.
A floresta amazônica é responsável por significativa parcela das chuvas na América do Sul. Já o Cerrado nativo, também conhecido como a "caixa d'água" do Brasil, promove a infiltração das chuvas que recebe e abastece as principais bacias hidrográficas do Cone Sul. Entretanto, há cerca de 50 anos, com os grandes empreendimentos agropecuários no Centro Oeste e no sul da Amazônia, voltados à exportação de carne bovina, a disponibilidade hídrica em importantes bacias vem diminuindo continuamente, a vazão dos rios vem diminuindo, as nascentes, secando, e o nível dos lençóis freáticos, baixando perigosamente.
A criação de gado de corte tem uma enorme pegada ecológica. Ela, na média mundial, fornece 37% das proteínas e 18% das calorias que necessitamos. Porém utiliza 83% das terras agriculturáveis do planeta e gera cerca de 60% dos GEE (gases de efeito estufa) do setor agropecuário. Sem o consumo de carne bovina e laticínios, a ocupação das terras usadas para a produção de alimentos poderia ser reduzida em até 75% e ainda suprir a população mundial.
Até cerca de um século atrás, antes da popularização dos refrigeradores e freezers para conservar os alimentos, o consumo de carne era bem menor pois ela estragava em poucos dias. O consumo diário de carne vem sendo associado ao crescimento de problemas como pressão alta, doenças cardíacas e pulmonares, prisão de ventre e câncer retal e estomacal, principalmente das carnes altamente processadas.
Como a produção existe em função de haver demanda, para frear essas tendências é importante nos tornarmos veganos ou vegetarianos, ou pelo menos "flexitarianos". Consumindo carne bovina com moderação: de uma a duas vezes por semana.
A carne tem uma proporção muito elevada de ômega 6 em relação ao ômega 3, o que aumenta nossa predisposição às inflamações. Já nos frutos do mar, por exemplo, que inclusive têm uma pegada ecológica bem menor, há um equilibro muito mais saudável entre ômega 6 e ômega 3.
Enquanto as dietas ocidentais carnívoras-padrão produzem em média cerca de 7,2 kg de GEE per capita diariamente, principalmente metano e gás carbônico, as vegetarianas geram 3,8 kg/dia, enquanto as veganas emitem 2,9 kg/dia. Reduções de 43% e 60% em relação à pegada ecológica da alimentação carnívora.
A produção de carne bovina é a principal causa da desflorestação tropical. Moderar o seu consumo e, principalmente, reduzir a exportação de carne, além dos benefícios à saúde, preserva o meio ambiente e reduz significativamente as emissões de GEE. Um estudo conjunto das Universidades de Stanford e Berkeley em 2022 demonstrou que, eliminando as emissões ligadas à pecuária de corte ao longo de 15 anos, pode-se compensar em até 68% as emissões mundiais globais de GEE até 2050.
Uma alternativa regenerativa aos pastos são os SAF. No Brasil, os povos indígenas foram os primeiros a introduzir SAF na Amazônia e contribuíram para o adensamento de espécies como castanha-do-pará, cacaueiro e vários tipos de palmeiras. Vale destacar que 1 hectare (ha) de SAF de cacau sob a floresta rende muito mais e gera bem mais empregos que 1 ha de pasto. E que, 4 meses após a implantação de um SAF voltado à produção de espécies consorciadas já se pode colher milho, feijão trepador, arroz, quiabo, maxixe, abóbora, tomate, etc, com produções crescentes nos meses e anos subsequentes, inclusive de frutas.
As árvores sequestram CO2 por meio da fotossíntese, promovem conforto térmico aos trabalhadores rurais (pense como é desgastante trabalhar em um pasto ou monocultura ensolarados na região central do Brasil), controlam a erosão, favorecem a infiltração das chuvas, e as reciclam por meio da evapotranspiração. Coletivamente, a floresta amazônica irriga grande parte do Cone Sul, de Cuiabá até Buenos Aires, através dos "Rios Voadores". Quanto não custaria ter de pagar por este "mega" serviço ambiental, atualmente ainda gratuito, se a Amazônia atingir o "tipping point"?
Apesar de todos esses benefícios, entre 1985 e 2024, com o avanço da agropecuária tradicional, cerca de 111 milhões de ha de vegetação natural desapareceram no Brasil, de acordo com o MapBiomas. Uma área maior do que a Bolívia, equivalente a 13% do território brasileiro. Quando vamos virar uma chave e regenerar esta imensa área implantando SAFs para restauração ecológica, agrossilvicultura, produção agrossivilpastoril e fins comerciais?
Fonte: Flaminio Levy Neto/ UOL

